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Ayrson Heráclito
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Ayrson Heráclito é artista visual e curador, doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professor do curso de Artes Visuais do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. Suas obras transitam pela instalação, performance, fotografia e audiovisual, lidando com frequência com elementos da cultura afro-brasileira, muitas delas, premiadas e vistas em individuais na Bahia e em festivais e bienais internacionais. Nos seus trabalhos encontramos dendê, referências à vida no Brasil colônia, à carne de charque, ao açúcar, ao peixe, esperma, sangue, corpo, dor, arrebatamentos, apartheids e sonhos de liberdade. Recentemente foi premiado pelo Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil com residência artística na Raw Material, em Dakar, Senegal.

Ayrson Heráclito. Segredos internos (segunda versão da instalação), 2010. MAM-BA. Foto: Márcio Lima
Ayrson Heráclito. Transmutação da carne, 2000. Performance. Icba
Ayrson Heráclito. Transmutação da carne: marcação a ferro, 2000. Performance. Icba
Ayrson Heráclito. O condor do Atlântico: a moqueca, 2000. Performance. MAM-BA. Foto: Edgard Oliva
Ayrson Heráclito. Divisor 2, 2000. Bienal Mercosul. Foto: Edson Varas
Ayrson Heráclito. Jesus no Monte das Oliveiras, 1986. Têmpera sobre papel, 100 x 70 cm
Ayrson Heráclito. Segredos internos (segunda versão da instalação), 2010. MAM-BA. Foto: Márcio Lima
Ayrson Heráclito. Transmutação da carne, 2000. Performance. Icba
Ayrson Heráclito. Transmutação da carne: marcação a ferro, 2000. Performance. Icba
Ayrson Heráclito. O condor do Atlântico: a moqueca, 2000. Performance. MAM-BA. Foto: Edgard Oliva
Ayrson Heráclito. Divisor 2, 2000. Bienal Mercosul. Foto: Edson Varas
Ayrson Heráclito. Jesus no Monte das Oliveiras, 1986. Têmpera sobre papel, 100 x 70 cm
Referências
HERÁCLITO, Ayrson. Espaços e ações. Salvador: o Autor, 2003.

______. Segredos no Boca do Inferno: arte, História e cultura baiana. Dissertação apresentada ao Mestrado em Artes Visuais da UFBA. 1997.

______. Entrevista para o documentário Arte Cidade Salvador, de Danillo Barata. 2003.

LIMA, Herman. Imagens do Ceará. Brasília: Ministério da Educação, 1958. p. 125-126.

MATTOSO, Katia M. de Queirós. Bahia, século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

MOTT, Luiz. Terror na Casa da Torre: tortura de escravos na Bahia colonial. In: REIS, J. J. (Org.). Escravidão e invenção da liberdade. S.Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 18-32.

PINHEIRO, Amálio. Mestiçagem latino-americana. Entrevista para o Jornal do Povo. (10 maio 2008. 16:57). Disponível em:<http://barrocomestico.blogspot.com/2008/05/entrevistado-amlio-para-o-jornal-o.html>. Acesso em: 15 mar. 2009.

RISÉRIO, Antônio. Uma história da cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004.

_______. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. 1ª edição, 1995.

_______. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1998.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Editora Record, 2000.

SILVA. Kalina Vanderlei. O barroco mestiço: Sistema de valores da sociedade açucareira da América Portuguesa nos séculos XVII e XVIII.  Revista Mneme v. 07. n. 16 jun./jul. 2005. Disponível em: <www.cerescaico.ufrn.br/mneme>.

VERGER. Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Baía de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. 4ª ed. Salvador: Corrupio, 2002.

Websites:

http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier036/apresenta.asp HYPERLINK

http://ayrsonheraclitoart.blogspot.com.br/

https://vimeo.com/ayrsonheraclito2011/videos

Links sobre o artista:

http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier036/ensaio.asp

http://www.liv.ac.uk/media/livacuk/csis2/blackatlantic/research/Conduru_text_defined.pdf

www.cbha.art.br/coloquios/2012/anais/pdfs/artigo_s5_robertoconduru.pdf

Ayrson Heráclito Novato Ferreira (Macaúbas, BA, 21 de junho de 1968).

Retrato:

 IMG_8   Foto: Tiago Sant’Ana

Formação:

1986 – 1989 – Licenciatura em  Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas. Universidade Católica do Salvador – UCSAL.

1995 – 1998 – Mestrado em Artes Visuais, PPGAV-EBA-UFBA.

2011 a atual – Doutorado em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

Período de atividade:

1984 à presente data.

 

Principais especialidades:

Instalação, performance, fotografia e audiovisual.

 

Outras atividades:

Professor, curador, fotógrafo e cenógrafo.

 

Assinatura:
Assinatura Ayrson Heráclito
Dados biográficos:

Ayrson Heráclito nasceu em Macaúbas, interior da Bahia. O gosto pela leitura o fez conhecer, muito cedo, autores como Sartre e Nietzsche. Ingressou na Escola de Artes Plásticas em 1986 e no curso de Educação Artística da Universidade Católica do Salvador. O estudo dos movimentos antiarte das décadas de 1960 e 1970, as experiências com o acaso e o aleatório das pesquisas musicais de John Cage sinalizavam para uma nova forma de ação artística que ultrapassava o limite da tela: a performance. Inspirado em tais referências, apresentou pequenos happenings na faculdade, suscitando estranheza e curiosidade.

A transvanguarda e o neoexpressionismo da década de 1980 colocavam a metalinguagem como um caminho possível para ultrapassar os limites impostos ao fazer pictórico, que pareciam esgotar o seu potencial criativo com a arte contemporânea. Necessariamente, as leituras de Foucault acabaram por contaminar completamente a sua forma de pensar a arte. Pensar a estética como um momento de construção de verdades sobre a arte, historiar completamente todas as possibilidades pseudouniversalizantes da tradição artística ocidental, operando desconstruções de cânones e paradigmas.

Em 1989 concluiu o curso Licenciatura em Educação Artística com Habilitação em Artes Plásticas. Em 1990 foi aprovado em concurso público promovido pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, como professor de Educação Artística do primeiro e segundo graus, seguindo para Vitória da Conquista.

O seu retorno para Salvador dá-se em 1995, quando foi motivado pelo desejo de empreender estudos mais sistemáticos na área de Arte, bem como em Antropologia e História da Bahia. Ingressou no recém-criado mestrado de Artes Plásticas da Universidade Federal da Bahia (Ufba), com o projeto de dissertação intitulada Segredos no Boca do Inferno: arte, história e cultura baiana, tendo como orientador o Prof. Dr. Michael Walker.

Tomando como referência a poesia satírica e erótica de Gregório de Mattos, organizou um mapa de orientação para um estudo histórico-antropológico da “baianidade”, traduzida na produção poética de Gregório de Mattos e o seu ajustamento na contemporaneidade.

A realização do trabalho exigiu-lhe uma vivência cotidiana, uma observação atenta do universo de pesquisa. Organizou, para tanto, um primeiro contato via a “poesia da época chamada Gregório de Matos” e o estudo histórico do Brasil colonial.

 

Estamos na cidade da Bahia: entre o moderno e o arcaico – “o monstruoso e o sublime” o nobre e o ignóbil – o carnaval e a miséria – a crítica e a emoção. E não estamos sós, estamos tropicalisticamente com todos os santos. Na velha relação do artista com o seu modelo, decerto um distanciamento platônico, onde o olho do artista investiga e se espelha no objeto de desejo e criação. Encontramos nas palavras de Antônio Risério citando Stefan Zweig (um escritor austríaco que se matou no Brasil) a minha verdadeira motivação para a criação deste conjunto de instalações. Ao comparar a cidade de Salvador com a atitude de uma velha rainha viúva – “uma rainha viúva, grandiosa como a das peças do Shakespeare,” – acrescenta Risério “uma rainha tão bem sucedida em seus convites a idealizações paradisíacas que geralmente consegue ocultar dos olhos que a contemplam, a realidade de sua miséria e de seus conflitos sociais.” – Então, como artista, adentro esta pesquisa, pinçando e picando certos segredos desta nossa cidade. Propus-me fazer uma pequena simbiose da cultura erudita e popular, pensando, com isto, exercitar os limites da arte, da antropologia, da história e da atitude artística. (HERÁCLITO, 1997, p. 14).

 

A partir desta visão, elaborou instalações onde os materiais utilizados não deveriam ser vistos como elementos da representação, mas sim como material em si, resultante das suas próprias fontes significantes. Apoiou-se, assim, nas concepções teóricas e nos ensinamentos estéticos de Joseph Beuys, para quem os materiais se sobrepõem ao artista enquanto identidade simbólica.

Joseph Beuys herdara dos seus estudos da década de cinquenta, quando foi aluno de Matarré, uma enorme sensibilidade para tratar das questões formais e compositivas diante do espaço. Segundo Heráclito:

 

Suas esculturas espaciais promovem um efeito onde o dramático, o patético, o hermético e o ancestral são revestidos de uma simplicidade que incorpora o acaso e revela uma inacreditável capacidade de transformar conceitos em imagens sensíveis. A obra de Beuys é a reunião, o conjunto integrado de muitas partes que se comunicam, gerando tensões de diversos tempos e espaços. (HERÁCLITO, 1997, p. 27).

 

Selecionou diversos materiais para a criação das obras: enxofre, petróleo, besouro, rapadura, azeite de dendê, carne-seca, mapa de época e associou a cada um deles uma referência culturalmente atribuída. Contudo, ao utilizá-los, recodificou-os, estabelecendo uma sintaxe dessas referências em relação ao espaço, desconstruindo e reconstruindo suas ordens simbólicas. Ao lê-las, o espectador estaria a desvendar a sua leitura da obra de Gregório de Mattos.

Na exposição Terrenos, retomou trabalhos utilizando dendê, material que fora primordialmente explorado na criação de esculturas apresentadas no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) em 1995. O dendê ocupa um papel central na sua investigação recente. O azeite de dendê, como compreende, é um elemento que estabelece, pela sua condutibilidade, uma integração simbólica e mística daquilo que podemos perceber como a afro-baianidade, concebida, nessa sua imagem, como um corpo alimentado por esse “sangue ancestral”. O papel do sangue no corpo humano serve como referência associativa ao uso que faz do dendê na sua obra.

O projeto de escultura social A transmutação da carne, evento artístico polifônico, desdobrado em várias etapas e instâncias sociais de intervenção, foi pensado no ano 2000. Nesta obra de fôlego, o artista tenta aplicar o conceito de escultura social, de Joseph Beuys, numa série de ações, cujo suporte artístico se utiliza da performance, da instalação e do happening, assim como da discussão como meios veiculadores da sua mensagem. Compreendido enquanto exercício de crítica social e renovação estética, tem como núcleo significante a confecção de uma coleção de roupas de carne que, apresentadas em vários eventos e situações, assumem formas diversificadas de ação artística, tendo a denúncia da fome no Brasil como a variável unificadora.

Na poética de Ayrson Heráclito, a cidade da Bahia é o corpus de sua produção e reflexão. Para Heráclito, a Cidade do Salvador é cheia de contrastes: arcaica e ao mesmo tempo nobre. Nobreza não no sentido histórico, mas dos valores, encontrando pessoas com valores e determinações louváveis e, ao mesmo tempo, pessoas sem nenhuma relação com o social e com a ecologia. Uma cidade cheia de contrastes, rica e pobre, glamorosa e decadente, antiga e contemporânea. A história e a arte de Salvador são determinantes na poética do artista, que na sua produção simbólica não foge dessa tensão.

O artista relata que as primeiras lembranças com deslumbramento da imagem aconteceram quando era bastante jovem, morava no interior, e no fundo da casa dos seus pais havia uma pequena oficina de costura. Certo dia, enquanto lá brincava, um escorpião o picou. O veneno causou um efeito alucinatório, sua consciência ficou alterada. As lembranças das luzes com a poeira da casa ficaram bastante fortes. Quase que imaterial, feixes de quase laser. Logo depois o tiraram dessa casa e, segundo seu relato, ele teve um êxtase. Era penumbra e, quando o levaram pelo quintal para a casa principal para ser visto pelo médico, ele nessa passagem sentiu um êxtase. Descobriu o céu azul de Vitória da Conquista. Um azul que se equipara ao da obra de Ives Klein. Para o artista, algo de espiritual, pois aos seis anos de idade sua percepção da imagem ficou bastante especial. O veneno com o azul do céu de Vitória da Conquista foi o primeiro momento de tomada de uma consciência estética.

Em seguida, a descoberta de sua relação com as artes, no contato com os quadros do seu irmão, este que era o artista, poeta, pintor, ele era o assistente, e aquilo era fascinante. O seu irmão morava em Salvador e, quando retornava a Vitória da Conquista, Heráclito achava impressionantes as sessões de pintura. Quando o irmão voltava para Salvador ele cuidava dos materiais, pincéis, paletas e tratava as telas como algo especial.

Um dia decidiu virar as telas e pintar no fundo dos quadros do irmão. Uma espécie de delito que não era percebido, um diário secreto com as imagens. Segundo relata:

 

Senti uma energia criativa tomando meu corpo, minha mente, a história da arte que chegava na cidade de Vitória da Conquista, na época bastante provinciana, sem informação que eu necessitava. Vinha de banca de revista que trazia exemplares de “gênios da pintura”. Eu aprendi história da arte com mês a mês conhecer um novo artista, um novo pintor, me apaixonei pela pintura impressionista, amei o Renoir, amei os pintores coloristas, pintura foi sempre algo associado ao fenômeno da cor.

No fundo da minha casa tinha o poço escuro, um bosque que fugia para ver a luz. Estranho para meus pais porque eu estava no telhado quando tinha que ir para a escola. Assistia muito o nascer do sol, e depois tive contato com uma professora de educação artística que se destacava na sociedade e na escola pelas roupas, com contraste, túnicas roxas e amarelas, exóticas, e meu curso, meu interesse era esperar os encontros que eu tinha com essa mulher, e ela me apresentou uma série de questões em relação a cor, eu já estudava os pós-impressionistas, o divisionismo, aquelas pesquisas da virada do séc. XIX para o XX que iriam transformar a cor. (HERÁCLITO, 2003, entrevista).

 

Envolveu-se com política e logo participou do grupo “Viração”, associado ao PCdoB; muito cedo teve contato e informação sobre política. Foi iniciado na versão para jovens d’O Capital, de Marx, ilustrado; ainda era muito jovem quando teve acesso a esse material. Notadamente, parte das ideias de Marx compõe algumas imagens do seu trabalho.

Na década de 1980, fez uma exposição intitulada O Homem Estético, em que materializava questões preconizadas por Marx: homem X necessidade X realidade.

O trabalho com artes plásticas começou de forma mais profissional quando se transferiu do interior para a capital, a fim de estudar, como toda classe média que vem para a capital atrás de mais recursos e informação. Matriculou-se no Instituto de Música da Universidade Católica do Salvador (UCSal). Nessa universidade iniciou os estudos acadêmicos no curso de Licenciatura em Artes Plásticas.

No início da década de 1980 transitava no circuito cultural da cidade do Salvador, principalmente no Corredor da Vitória, uma das ruas mais movimentadas culturalmente por abrigar diversas galerias, museus e centros culturais. Essa região da cidade era um espaço importante e ele, morando na Federação, ia sempre até ali para ver exposições e visitar museus: Museu Carlos Costa Pinto, Museu de Arte da Bahia (MAB), Acbeu e Icba. A Vitória era um espaço que lhe nutria com informação e referências artísticas, diferentemente do que ocorria numa cidade como Vitória da Conquista, onde não existiam museus, bibliotecas, instituições culturais, muito embora fosse uma macrorregião com uma profusão de artistas importantes, tais como Glauber Rocha, Elomar, Geraldo Sarno e Gilberto Gil.

Ao iniciar a vida acadêmica na UCSal, teve um trabalho selecionado para o Salão de Arte, em 1986, num momento em que os artistas favoritos eram alunos da Ufba, porque o curso da Católica era focado na arte-educação e, portanto, o seu público era composto em sua maioria por arte-educadores. Apesar disso, Ayrson foi premiado, juntamente com Gabriel Lopes Pontes, da Ufba.

Nesse Salão, Ayrson passou a ficar mais conhecido do público, dos artistas e de uma cena da crítica das artes na Bahia. Na ocasião, Frederico de Morais era um dos membros do júri e reconheceu o valor do trabalho exposto, concedendo-lhe um prêmio. Comentou então que Ayrson não era tão jovem e que, portanto, “usava pseudônimo num evento que era para iniciantes”. (HERÁCLITO, 2003)

Sua produção era densa. Falava de religião e falava de política social. Jesus no Monte das Oliveiras, título da pintura apresentada, era um trabalho forte, pois de certa maneira comentava os contrastes sociais na cidade da Bahia naquele momento. Havia greve dos garis e o lixo não era coletado. Morando em frente a vários restaurantes que formavam uma pilha de lixo no final do dia, com efeito, a imagem do monte de lixo marcou seu cotidiano. Dessa maneira, todo dia, em torno das 18 horas, o lixo acumulava-se ao final da jornada de trabalho dos ambulantes e de todos no comércio do centro da cidade. Um dia em especial, presenciou o seguinte fato: um homem, um louco, sem teto, morador de rua, sentou-se quase como um iogue e ali ficou por cerca de 30 minutos degustando esse lixo; a posição daquele indivíduo chamou sua atenção. Para Ayrson, aquela imagem emblemática cristalizou-se e imediatamente fez um desenho dela. À época, a forma poética como retratou o homem era uma grande ironia que conscientemente fazia ali. Fez de forma bastante expressiva, traço agressivo, com referências ao pop através dos signos do lixo. Na abordagem, era algo entre o expressionismo e o pop. Isso foi o que o lançou e permitiu, incentivou o desenvolvimento de uma série de trabalhos. Lia muito sobre filosofia, literatura e sempre fazia referências externas.

Ainda na universidade foi influenciado por dois artistas: Almandrade, que trazia consigo uma formação densa no campo da teoria da arte e da arte conceitual, um artista que manteve uma relação estreita com o movimento neoconcreto; e o outro foi Vauluizo Bezerra, pelo caráter expressivo e emocional. Vauluizo, um artista autoditada com uma sólida formação artística e humanística, é uma grande referência para os artistas da nova geração, tendo realizado a curadoria no final dos anos de 1990 da exposição Terrenos, no Goethe Institut Inter Nationes, instituição que lançou diversos artistas na cena brasileira.

Almandrade apresentou Heráclito à produção de artistas da vanguarda, como Lygia Clark e Hélio Oiticica. Os descobrimentos e estudos do artista, em sua maioria, eram potencializados na aula de estética do Prof. Dante Galeffi. Dante era filho de Romano Gallefi, um dos grandes professores da Faculdade de Filosofia da Ufba e que gozava de grande admiração de todos que, por algum motivo, frequentavam as suas aulas e seu apartamento nos Barris, nas “fenomenologias” regadas a muita música clássica, poesia e performances. Curiosamente, Ayrson tornou-se professor de estética e sentia-se envaidecido pelo fato de ensinar tal disciplina após ter sido aluno de Dante.

Na universidade realizou um documentário sobre Almandrade. Na ocasião das filmagens, que duraram duas semanas, Almandrade falou não só do próprio trabalho, mas apresentou artistas da vanguarda brasileira das décadas de 1960 e 1970.

Logo depois, quase no final do curso de graduação, começou a se aproximar de Joseph Beuys. O Goethe Institut promoveu, no final do anos 1980, uma grande mostra com filmes do Beuys e “contaminado” por isso voltou seus estudos para a arte contemporânea. Impressionado com a performance Como explicar quadro a uma lebre morta, aprofundou em uma pesquisa sistemática e autônoma a obra e a vida daquele artista. Não havia na época publicações e nem mesmo muitos registros sobre a produção de Beuys. A distância da produção do artista alemão era, de certa maneira, compensada pelo fácil acesso à biblioteca do Goethe Institut. Sua atenção era focada no mistério e a sensoridade no uso dos materiais e na própria execução da obra. A instauração da obra se dava a partir de um certo “mistério” composto pelos signos oriundos das ações e de todo o residual produzido na Ação. Uma semântica muito particular, com conceitos bem específicos que ele não dominava.

Mesmo sendo completamente diferente dele, houve uma identificação completa e bastante contundente com aquele estrangeiro. Um artista alemão, que vivia na Europa, num ambiente muito diferente do seu e das suas referências. No entanto, havia uma estética próxima à que guardava na sua memória da infância, que da Chapada Diamantina trazia o alambique, a rapadura, a comida caipira e a carne de charque. Esses materiais emblemáticos o aproximavam do trabalho de Beuys.

Estudou, nesse período, alguns materiais que, de certa forma, estavam associados à plástica baiana, à visualidade da Bahia. Começou a pesquisar e catalogar os despachos, as oferendas do candomblé, assim como as feiras livres, que eram completamente diferentes das feiras de Vitória da Conquista, que Elomar Figueira cantava e que para Ayrson era um universo muito inusitado e orgânico. O seu interesse foi centrado na estética das galerias da Feira de São Joaquim, nos materiais orgânicos e abundantes nas feiras, e nos “vivos” – bichos de quatro patas e de penas – que representavam a cultura afro-baiana.

O Fausto baiano – Escolheu três materiais: carne de charque seca, que trazia a referência da cultura da Chapada, da pecuária, mas antes da carne vieram o açúcar, a cana, as rapaduras, os diversos tipos de açúcar, que estavam associados à história da Bahia colonial e o dendê. O azeite de dendê era signo desse sangue ancestral que oxigenava o corpo, da carne seca, resistente. O dendê como sangue vegetal e esperma de Exú. Para Ayrson esse projeto apresentava o primeiro Fausto baiano. Os estudos da Bahia colonial serviram para entender o que era tradicional na Bahia e o que era contemporâneo. Em 1994, durante o curso de Mestrado em Artes Visuais na Escola de Belas Artes da Ufba, sistematizou seus estudos e utilizou Gregório de Mattos como referência em sua pesquisa.

 

A realização deste trabalho exigiu-me uma vivência cotidiana, uma observação atenta do universo da pesquisa. Então, organizei um primeiro contato via “a poesia da época chamada Gregório de Matos” e o estudo histórico do Brasil colonial. A leitura da obra satírica do Gregório deu-me uma compreensão marcadamente céptica, permitindo-me com isso uma aproximação de um universo de contraste caracteristicamente barroco, donde a inversão dos padrões dominantes, a exacerbação do grotesco, o achincalhamento dos valores morais, constituíram uma postura artística, não só como fruto da sua época, mas, principalmente, do artista frente à sua época. O projeto de colonização do Brasil, agenciado pelo Estado português e pela Igreja Católica, teve como forma mais saliente de expressão de poder a coerção e a punição (Foucault). Nesta perspectiva, a repressão às condutas desviantes e a segregação dos elementos ditos nocivos à ordem foram as práticas hegemônicas dos mecanismos de poder colonial, quer seja através das instituições metropolitanas com as penas de morte e o degredo, quer seja através da justiça eclesiástica, com a Inquisição. Não estavam os aparelhos do poder preocupados em disciplinar a sociedade com vistas à prevenção, mas em punir a conduta transgressora.

Marcado pelo movimento da Contra-Reforma, do qual o Concílio de Trento é a expressão mais legítima, foi imposto à sociedade colonial brasileira um modelo de sociedade baseado na família monogâmica e indissolúvel e ascética sob a tuteIa inconteste do pai. O escravismo e outras questões inerentes à empresa colonial fizeram com que este modelo tivesse um caráter francamente artificial. Concubinato, bastardia, vida sexual desregrada, religiosidade popular de característica profana reinventavam a todo instante as prédicas dos padres e as ordens régias da coroa.

Assim, uma rede de sociabilidade se desenvolvia longe do formalismo das elites dirigentes. Dominada por relações políticas de cunho pessoal e particularista, consumidas sobre relações sociais marcadamente violentas – característica inerente à ordem senhorial – escravista, envolvida pela multiplicidade de padrões culturais, tanto das trocas étnicas sobre as quais se assentou a sociedade colonial, o Brasil se coloca como a matriz perfeita para a poética satírica da “Poesia da Época Chamada Gregório de Matos”. O diálogo do poeta com o seu tempo descortina as tensões deste mundo, sempre; beira do caos e da desordem, sendo o Brasil, na imagem de Antonil, “o purgatório dos brancos, o paraíso dos mulatos e o inferno dos negros”. E é neste contexto explícito de fragilidade da hegemonia católico-lusitana, que encontro o meu objeto de pesquisa e a associação da produção poética de Gregório com a falência do projeto colonial. (HERÁCLITO, 1997, p.  9-10).

 

O artista começou a desenvolver uma série de instalações sobre a história da Bahia, utilizando esses materiais emblemáticos (carne de charque, açúcar e óleo de dendê). A escolha desses materiais era baseada em estudos sobre a economia açucareira e o que o açúcar poderia significar num confronto entre a tradição e o contemporâneo. Em 1994, fez uma grande instalação onde esse material foi publicado.

Nos estudos sobre o sistema colonial, a questão da escravidão chamou sua atenção. O senhor de engenho, as logomarcas dos senhores, dos engenhos, as peças de negros. Toda essa cosmogonia era, de certa maneira, apropriada ao trabalho. Desses trabalhos, fez algumas ações, pois, como defende o artista, era mais coerente ao alinhamento conceitual/artístico, que prefere chamar de ações, a performance. A sua produção simbólica coloca em xeque os processos civilizatórios e a própria cultura. Segundo Pinheiro:

 

A cultura não pode ser vista como um projeto cumulativo na direção de um coroamento linear no futuro, mas como uma rede de conexões entre séries, cuja força de fricção e engaste ressalta a noção de processos dentro de sua estrutura. Daí a importância de se mostrar como certos processos civilizatórios têm o seu modo de conhecimento fundado numa especial relação material entre séries culturais concretas que constituem ao mesmo tempo relações entre sistemas e subsistemas de signos.

Tais processos se constituem especialmente a partir de três categorias antropossociais, fundantes e interdependentes: o migrante, o mestiço e o aberto. (PINHEIRO, 2009).

 

Nesta perspectiva, na década de 2000, retomou seus trabalhos com a carne, projeto que denominou Transmutação da carne, e apresentou diversas ações em museus e espaços públicos. A ideia era romper com os espaços oferecidos pela política cultural de Salvador.

A Carne – Nas viagens que fazia pela Europa, tinha contato com sociedades pós-industriais e podia observar como a arte era encarada. Via nas distinções entre design e arte contemporânea coisas que, até aquele período, não vivíamos aqui. Desse modo, apresentava o universo do museu para a rua em eventos de designs como moda, shoppings e praças públicas.

Desenvolveu uma coleção de roupas de carne, e não era o inusitado do material o que chamava atenção, e sim como colocava essas coisas num determinado contexto. Ressaltava-se, ainda, o caráter político por trás daquilo; mesmo “sem ter intenção de ser político, mas o constrangimento passava a ser político, eficiente nesse nível”, afirma Heráclito. (HERÁCLITO, 2003)

Chamou esse projeto de Teatralogia da escravidão. Foi um dos grandes destaques da Semana de Moda Oi Barra Fashion, que ganhou a mídia nacional, em especial, num quadro do Fantástico na Rede Globo de TV. Com efeito, paralelamente a isso, havia todo um discurso que era entendido por grande parte do público e a carne virou uma metáfora viva, do corpo brasileiro de carne resistente, não era filé mignon, era carne barata, e estava associada com um dos pratos da culinária brasileira, que era a feijoada. Notadamente, esse tipo de carne tinha um uso muito particular por se tratar de uma “herança de comida de Senzala”, carne reaproveitada, refugo, mas essa carne “polissêmica” era como metáfora para este corpo resistente. Dessa forma, chamava atenção para a injustiça social brasileira e a questão da fome. Potencializou a dimensão do trabalho para um desdobramento de política social. Realizou doações de carne em creches, igrejas, asilos e centros comunitários. Finalmente, formatou um projeto que deveria ser associado a uma empresa alimentícia, mas porque não houve uma reverberação positiva, aos poucos, o projeto transformou-se e a temática de algum modo está latente. Alguns aspectos ainda são recorrentes na poética do artista: arte versus participação social, filantropia versus assistencialismo, notadamente, as políticas sociais brasileiras e sua ressignificação em particularizações territoriais.

Em 2000 foi convidado pelo Goethe Institut Inter Nationes – Icba Salvador para fazer uma performance. Nesse evento, organizou uma série de quatro ações utilizando a carne. Em uma delas, havia um áudio no espaço com objetos que comentavam a violência ao corpo, áudio com registros históricos com documentos de violência, que eram narrados sistematicamente por um performer. Os autos de torturas feitas por Garcia D’Ávila Pereira Aragão geraram 12 folhas manuscritas, que nos finais do século XVIII foram enviadas da Bahia de Todos os Santos ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. Trata-se de denúncia com 47 itens contra o homem mais rico do Brasil. Segundo Luiz Mott:

Das 47 denúncias, 26 itens referem-se a torturas e castigos crudelíssimos aplicados pelo Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão contra seus escravos – cujos requintes de crueldade chocam mesmo ao mais empedernido coração! – sendo 21 os itens que incriminam o proprietário da Casa da Torre em blasfêmias e irreverência contra a religião católica – a única permitida na época em toda cristandade. (MOTT, 1988, p. 18).

 

Complementavam leituras de relato de torturas a presos políticos da ditadura que se estabeleceu no Brasil a partir de 1964. Desse modo, a ambiência era completamente afetada por tais narrações. Os áudios, como transcritos abaixo, denotam a crueldade do Mestre de Campo:

 

Item 1. Que a um escravo crioulo chamado Hipólito, de idade de 16 anos, pouco mais ou menos, o mandou montar em um cavalo de pau, e mandou lhe amarrassem em cada pé uma arroba de bronze, ficando com os pés altos, e o mandou deitar sobre o cavalo, mandando dois negros açoitá-lo, que o fizeram por sua ordem rigorosamente, desde pela manhã 8 horas até as 11 horas do dia; que depois disto feito, o mandou amarrar com uma corda pelos pulsos dos braços juntos, e passada a outra parte da corda ao mourão da casa, o foram guindando até o porem com os pés altos fora do chão, braça e meia pouco mais ou menos; e mandou passar-lhe uma ponta da corda nos testículos ou grãos, bem apertada e na outra ponta Ihe mandou pendurar meia arroba de bronze, ficando no ar para lhes estar puxando os grãos para baixo; que o pobre miserável dava gritos que metia compaixão, e ao mesmo tempo, lhe mandou pôr uns anjinhos nos dedos dos pés ajuntando-os, que tal foi o aperto, que lhe fez o dito Mestre de Campo, que lhe ia cortando os dedos, e esteve com estes martírios obra de duas horas, que por Deus ser servido não morreu desesperado o arrenegado.

Item 2. Que a uma escrava mestiça chamada Lauriana de idade de 25 anos, pouco mais ou menos, a castigava o dito Mestre de Campo muitas vezes, dando-lhe com uma palmatória de pau pela cara e queixadas do rosto, levantando a mão com a maior força que podia, e andava esta continuamente com o rosto inchado, procedido de semelhante castigo.

Item 3. Que querendo noutra ocasião castigar a mesma dita escrava acima, mandava buscar uma turquesa grande de sapateiro, e a mandava chegar a si, trepando-se ele, o dito Mestre de Campo em lugar mais alto, e metendo a turquesa aberta na cabeça da dita escrava, tudo quanto apanhava de cabelos fixando a turquesa, lhes arrancava de uma vez. (MOTT, 1988, p. 19).

 

Esse texto foi fundamental para criar as bases da performance e da investigação do  artista. Naturalmente, o conjunto das quatro ações era visceral e criava um profundo mal-estar na audiência.

A primeira ação fazia referência aos maus-tratos aos negros, marcar o corpo a ferro. O artista utilizou ferros de marcar escravos. Para tanto vestiu os performers com roupas de charque e então um corpo historicizado marcava a ferro quente o “corpo feito com carne de charque”. As imagens e o cheiro eram muito impactantes; essas imagens e o odor, de certa forma, davam materialidade aos textos. A aproximação dessa imagem, que até então era abstrata, o cheiro, o calor do ferro em brasa, expor isso era o objetivo da primeira ação.

A segunda ação era a da fragmentação do corpo: um esquartejamento. A premissa era “como seria se víssemos esse suplício público?” Organizar uma mesa de tortura, e o corpo era esse corpo histórico, com revestimento de carne. Após a marcação a ferro, os performers se dirigiam a uma grande instalação que reinventava a masmorra.

A terceira ação era caminhar sobre brasas, uma imagem que o artista queria retomar a partir de pesquisas que realizou em filmes que exibiam figuras exóticas do Oriente. A versão dos trópicos foi recriada e utilizava sapatos de carne.

A quarta e última ação era um churrasco humano, uma grande manta de carne de charque era envolvida no performer, de modo que, colocado em um grelha gigante, era assado como um churrasco humano. Todo o ambiente da sala era afetado por um áudio não ficcional baseado em documentos históricos, cujos conteúdos estavam distantes pela data e próximos pelo cheiro, pela visão, num ritual que tentava evocar toda essa dor deste corpo.

As ações surtiram um efeito realista para o público. Algumas pessoas na audiência comentavam que era insuportável permanecer no local. Ademais, a visão era potencializada por uma questão sensorial. A galeria ficou a uma temperatura de 45ºC e isso era acrescido de um cheiro de 600 kg de carne. O material empregado, a memória ali reivindicada, era evidentemente muito cruel e visceral.

Após a exposição no Icba, o artista apresentou esse trabalho em outro formato no OI Barra Fashion, um dos eventos de moda mais importantes do Norte e Nordeste naquele período. Julgava que era necessário dar mais visibilidade ao projeto, promovendo a sua participação em eventos midiáticos que pudessem divulgá-lo. Após o desfile, as pessoas queriam saber de forma mais concreta qual era a relação daquelas roupas com um projeto mais denso que, de certo modo, não era comum em desfiles.

Além de levar os modelos para praças, como a da Piedade, realizou doações em oito lugares de Salvador. As doações ficaram associadas à campanha contra a fome, que por sincronicidade o Governo Federal acabara de implementar. Mesmo assim, as pessoas sabiam que aquela carne fazia parte de um evento criativo e aquilo concluía a poética ao devolver o material ao seu fim inicial, mas com outra dimensão, com a referência de onde aquilo se passou. Bolsa de carne no feijão ligava a criatividade ao preparo da comida, algo surreal. Desse modo, era possível comer sapato, bolsa, etc.

O Dendê – Após o projeto da Carne, Ayrson passou a se interessar por materiais mais fluidos, pelas questões do Atlântico negro, com fluxos e refluxos[1] entre a África e a Bahia. Nesse momento, escolheu o azeite de dendê como símbolo que culminaria na exposição Ecologia de pertencimento.

O dendê lhe interessou porque era uma metáfora do corpo, e o dendê, dentro da sua poética, oxigena esse corpo cultural, corpo negro, baiano, com forte influência das questões negras. Nesse sentido, estabeleceu alguns pressupostos. A primeira ideia era trabalhar o dendê como sangue, como se o sangue fosse o oceano, a imagem de um mar de dendê como metáfora de um Atlântico negro, oxigênio que impulsionaria esse corpo resistente da América.

Essa fluidez atlântica foi a base poética dos pressupostos que iniciaria uma série de performances, vídeos e instalações. O artista realizou uma ação no Museu de Arte Moderna da Bahia que denominou de Condor do Atlântico. Com isso ele criou um discurso libertário em relação a esse acidente ecológico, que foi a escravidão.

Na ação a Grande moqueca, desenvolvida na mesma exposição do MAM-BA, realizou nas partes interna e externa do museu, com a participação do público e da comunidade da Gamboa, um evento ritualístico de preparação, cozimento de um peixe denominado de arraia.

A arraia é um peixe barato e muito popular na Bahia. Considerado peixe de segunda – não era um badejo, assim como a carne de charque não é filé mignon –, não no valor nutritivo, mas cultural, a arraia era a metáfora desse condor, pássaro da liberdade, do mar Atlântico, que ele apresentava ao público. A arraia era um signo mais aberto deste poema abolicionista contemporâneo, uma referência aos condores que Castro Alves anunciava em seus poemas. Escolheu uma arraia e “ritualizou-a” em uma moqueca. Para tanto, era fundamental que a arraia fosse grande, reforçando o caráter da grandiosidade, que é um dos elementos da estética barroca. Com isso, montou dentro do museu uma cozinha e a relação entre comida e arte estava consagrada nas práticas e ações desenvolvidas naquele percurso.

A comida tinha um caráter eminentemente religioso no seu ritual, tanto no preparo quanto na degustação. A arraia de 120 kg esteve no dia anterior em exposição e, no dia seguinte, foi completamente “ritualizado” o seu preparo. O público podia participar preparando aquela comida. Dessa forma, era evidenciado o propósito de criar tensão entre arte e religião.

Essa tensão em experimentar em espaços públicos e fechados de Salvador era curiosamente observada por Ayrson, pois assim ele verificava como a população de Salvador tratava os despachos[2]. Em suas derivas, observava, em tempos de intolerância religiosa, que algumas pessoas chutavam, mas, também, havia pessoas que comiam e bebiam parte das oferendas ali depositadas. Ademais, era perceptível que muitos cidadãos soteropolitanos compreendiam e já sabiam ler algumas oferendas, distinguindo para que santo cada uma delas era dirigida e qual o tipo de trabalho pretendido pelos materiais ali empregados.

De certa maneira, na Bahia, todo espaço público é sistematizado. O baiano da Bahia “profunda” conhece suas encruzilhadas. Nesse sentido, essa cosmogonia é a base que alimenta a produção simbólica e estética de Ayrson. Um espaço de arte mais ligado a esses assentamentos religiosos, e essa ligação entre arte e fetiche, notadamente, a ele interessaram desde o primeiro trabalho Jesus no Monte das Oliveiras.

 

Constatei que alguns materiais poderiam ser interpretados de forma hegemônica por diversos grupos sociais locais, como, por exemplo, os materiais utilizados nos rituais e na culinária Afro-Baiana. O azeite de dendê é um deles. Simultaneamente, promovo uma decodificação e uma nova forma de absorção de seu significado usual. Somado a esta relação de Materiais\Signo, ocupo-me em experimentar a exposição do trabalho em espaços distintos: locais externos (praças, jardins, etc.) e em instituições de veiculação de artes plásticas (museus, galerias, etc.). Concluo que a obra se transforma no espaço em que se insere. O signo de cada espaço, ou seja: Se colocarmos um Rodin em um museu temos um Rodin, contudo, se o mesmo Rodin for exposto em uma encruzilhada continuaremos tendo um Rodin mal colocado. (HERÁCLITO, 1997, p. 39).

 

Em Imagens do Ceará, Herman Lima (1958, p. 125-126) cita o sociólogo Gilberto Freyre que, para distinguir o cearense do baiano, afirma: “o cearense concorrendo com seu asceticismo angulosamente magro, romântico, ativista, andejo, inquieto, empreendedor, franciscano e fraternal”, já o baiano é caracterizado pela “sua volutuosidade gorda, sedentária, lentamente criadora de valores profundos e estáveis, fecundamente maternal, ou antes matriarcal”. Tal relação e distinção são fundamentais para exemplificar as distinções de valores culturais, estéticos e éticos.

 


[1] Fluxo e refluxo: a Diáspora Africana.

“Em suas constantes idas e vindas entre a África Ocidental e a Bahia, Verger não deixava de se encantar com as semelhanças entre os povos dos dois lados do Atlântico. Na aparência, jeito de falar e costumes, ele via a comprovação de uma história entrelaçada. O tema o apaixonou tanto, que Verger chegou a exercer um importante papel na renovação desses laços. Aqui e lá, organizou museus, ciceroneou pessoas, transportou mensagens, fez pesquisas. E, para compreender os motivos dessas semelhanças, estudou a fundo o tráfico de escravos e o retorno de muitos deles à África, após a abolição, gerando assim uma de suas principais obras: Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Baía de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX”.

Disponível em: <http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id =14&Itemid=41&limit=1&limitstart=3>. Acesso em: 20 nov. 2008.

 

[2] Os despachos são oferendas que os praticantes das religiões afro-brasileiras oferecem às divindades. Comumente nas encruzilhadas são oferecidas à divindade Exu. Conhecida como Ebó ou Bozó.

 

Mostras individuais:

1989 – Salvador, BA – No limite da Sagrada Família, no Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM-BA.

1990 – Vitória da Conquista, BA – Dentro do escuro, na Galeria Vila Imperial.

2000 – Salvador, BA – A transmutação da carne, na Galeria do Instituto Cultural Brasil-Alemanha – Icba (Goethe Institut).

2002 – Salvador, BA – Ecologia do pertencimento, no Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM-BA.

2008 – Salvador, BA – Bori Peformance-Art, no Teatro Castro Alves.

2009 – Belo Horizonte, MG – MIP 2 International Performance Manifestation.

2013 – São Paulo, SP – Black Atlantic, na Central Gallery.

 

Participações em Salões, Bienais e coletivas:

1987 – Vitória da Conquista, BA – Nós, no Centro Cultural Camilo de Jesus Lima.

1987 – Salvador, BA – Projeto fim de tarde com Villa Lobos, no Instituto de Música da Ucsal.

1988 – Recife, PE – Salão de Arte Contemporânea de Pernambuco. Promoção Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte de Pernambuco.

1988 – Salvador, BA – Semana da Abolição, no Instituto de Música da Ucsal.

1989 -  Salvador, BA – Em aberto, na Galeria Aquarela.

1989 -  Salvador, BA – Poética, no Gabinete Português de Leitura. Promoção do Instituto de Música da Ucsal.

1990 -  Salvador, BA – Exposição coletiva de colagem, na Galeria do Instituto Cultural Brasil-Alemanha – Icba (Goethe Institut).

1990 – Salvador, BA – Das estrelas ao asfalto, no Museu de Arte da Bahia.

1990 – Salvador, BA – Z Eros ao infinito, na Galeria de Arte Nata.

1991 -  São Félix, BA – 1a Bienal do Recôncavo.

1991 – Vitória da Conquista, BA – Arte Conquista, no Shopping Itatiaia. Promoção da Prefeitura Municipal de Conquista.

1933 -  Salvador, BA – Artistas emergentes, no Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM-BA.

1994 -  Salvador, BA – Eróticos, no Museu da Cidade do Salvador.

1994 – São Félix, BA – Olhos de lince, 2a Bienal do Recôncavo.

1995 – São Paulo, SP – Artistas baianos, no Museu de Arte Contemporânea – MAC USP.

1999 -  Salvador, BA – Casa Cor Bahia – Espaço David Bastos.

1999 – Salvador, BA – II Mostra Artefato Bahia / São Paulo, na Loja Artefato.

2000 – Salvador, BA – Migragens, Festival imagem em 5 minutos, Fundação Cultural do Estado da Bahia.

2000 – Salvador, BA – Exposição comemorativa aos 25 anos da Galeria Acbeu.

2000 – Salvador, BA – Terrenos, na Galeria do Instituto Cultural Brasil-Alemanha – Icba (Goethe Institut).

2000 – Salvador, BA – Transmutação da carne, Barra Fashion.

2000 – Salvador, BA – Espaço das artes – Projeto rádio bazar, Estação Jequitaia.

2000 – Salvador, BA – A arte da luz: Ayrson Heráclito e Marly Muritiba, na Galeria do Teatro XVIII.

2000 – Salvador, BA – Material in material, Clube Baiano de Tênis.

2000 – Salvador, BA – In site, no Armazém Cultural Santo Expedito.

2000 – Salvador, BA – Material in material, Teatro Diplomata.

2000 – 2001 – Nova York, EUA – Design 21 – Felíssimo.

2002 –  Salvador, BA – 9º Salão da Bahia, no Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM-BA.

2004 –  Salvador, BA – 1º de abril (Dia da mentira), Galpão Santa Luzia.

2004 – São Paulo, SP – Barrueco (videoarte), 5o Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, SESC Pompéia.

2004 – Buenos Aires, Argentina – Bahia A Fora, Terra Fértil Gallery.

2005 – Colônia, Alemanha – Barrueco, Biennial of Vídeo Art, Kunstfilm Biennale.

2005 – Koblenz, Alemanha – Discover Brasil, Ludvig Museum.

2006 – Salvador, BA – Cosmogonia Cravo (curadoria), Museu Rodin Bahia.

2007 – São Paulo, SP – The Hands of Epô (video). 16o Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil.

2008- Tavira, Portugal – Atualização em retalhos postais da Bahia, Museu Municipal de Tavira.

2009 – Salvador, BA – Saccharum-BA, Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM-BA.

2010 – Luanda, Angola – Luanda Triennial.

2011 – São Paulo, SP – 7th Berlin International Directors Lounge. “Contemporary Lusophone Art”, Memorial da América Latina.

2012 – Bruxelas, Bélgica e Amsterdã, Holanda – Incorporation: Afro-Brazilian Contemporary Art. Europalia Brasil. Brussels. Full Brazilian and Other Rituals. Museumnacht – De Oude Kerk. Amsterdam.

2013 – São Paulo, SP – Funfun. 18o Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil.

 

Premiações:

1986 – Salvador, BA – 1o Salão Metanor / Copenor de Artes Visuais da Bahia. 1º lugar.

1988 – Salvador, BA – 1o Salão Baiano de Artes Plásticas, no Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM-BA. 1º lugar.

1988 – Salvador, BA – Concurso resgate afro, no Instituto de Música da Ucsal. Menção honrosa.

1992 – Salvador, BA – 2o Salão Universitário de Artes Visuais, na Universidade Federal da Bahia.

1992 – Salvador, BA – 2o Salão Baiano de Artes Plásticas, no Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM-BA. Prêmio referência especial.

1992 – Salvador, BA – Festival imagem em 5 minutos, Fundação Cultural do Estado da Bahia. 2º lugar.

1994 – São Félix, BA – 2a Bienal do Recôncavo, no Centro Cultural Dannemann. Prêmio aquisição.

1994 – Salvador, BA – 11ª Oficina nacional de dança contemporânea, Concurso de instalação e performance, no Teatro Castro Alves.

2002 – Salvador, BA – Prêmio Braskem de Cultura e Arte, no Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM-BA.

2002 – Salvador, BA – 9º Salão da Bahia, no Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM-BA.

2007 – São Paulo, SP – As mãos de Epô (vídeo). 16o Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil.

2013 – São Paulo, SP – Funfun. 18o Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil. Residência artística na Raw Material Company, em Dakar, Senegal.

 

Coleções:

Possui obras em acervos no Museum der Weltkulturen Franfurt na Alemanha, no Museu de Arte Moderna da Bahia, no Videobrasil e em diversas coleções particulares.

 

 

 

 

Referências
HERÁCLITO, Ayrson. Espaços e ações. Salvador: o Autor, 2003.

______. Segredos no Boca do Inferno: arte, História e cultura baiana. Dissertação apresentada ao Mestrado em Artes Visuais da UFBA. 1997.

______. Entrevista para o documentário Arte Cidade Salvador, de Danillo Barata. 2003.

LIMA, Herman. Imagens do Ceará. Brasília: Ministério da Educação, 1958. p. 125-126.

MATTOSO, Katia M. de Queirós. Bahia, século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

MOTT, Luiz. Terror na Casa da Torre: tortura de escravos na Bahia colonial. In: REIS, J. J. (Org.). Escravidão e invenção da liberdade. S.Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 18-32.

PINHEIRO, Amálio. Mestiçagem latino-americana. Entrevista para o Jornal do Povo. (10 maio 2008. 16:57). Disponível em:<http://barrocomestico.blogspot.com/2008/05/entrevistado-amlio-para-o-jornal-o.html>. Acesso em: 15 mar. 2009.

RISÉRIO, Antônio. Uma história da cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004.

_______. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. 1ª edição, 1995.

_______. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1998.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Editora Record, 2000.

SILVA. Kalina Vanderlei. O barroco mestiço: Sistema de valores da sociedade açucareira da América Portuguesa nos séculos XVII e XVIII.  Revista Mneme v. 07. n. 16 jun./jul. 2005. Disponível em: <www.cerescaico.ufrn.br/mneme>.

VERGER. Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Baía de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. 4ª ed. Salvador: Corrupio, 2002.

Websites:

http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier036/apresenta.asp HYPERLINK

http://ayrsonheraclitoart.blogspot.com.br/

https://vimeo.com/ayrsonheraclito2011/videos

Links sobre o artista:

http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier036/ensaio.asp

http://www.liv.ac.uk/media/livacuk/csis2/blackatlantic/research/Conduru_text_defined.pdf

www.cbha.art.br/coloquios/2012/anais/pdfs/artigo_s5_robertoconduru.pdf
Autoria

Autores(as) do verbete:

Danillo Barata

D536

Dicionário Manuel Querino de arte na Bahia / Org. Luiz Alberto Ribeiro Freire, Maria Hermínia Oliveira Hernandez. – Salvador: EBA-UFBA, CAHL-UFRB, 2014.

Acesso através de http: www.dicionario.belasartes.ufba.br
ISBN 978-85-8292-018-3

1. Artes – dicionário. 2. Manuel Querino. I. Freire, Luiz Alberto Ribeiro. II. Hernandez, Maria Hermínia Olivera. III. Universidade Federal da Bahia. III. Título

CDU 7.046.3(038)

 

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One Response to “Ayrson Heráclito”

  1. Ayrson Aparecido Machado

    Ebó ou Bozó – não tem significado (tradução).

    ayrson – expressão, nome próprio, qual é a origem!!!

    Responder

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